terça-feira, 22 de outubro de 2013

REPENSANDO RELIGIÃO - O Perigo da Normatividade Religiosa


Hoje em dia é muito comum ouvir-se falar de heteronormatividade e cisnormatividade, termos que denominam o padrão aceito e imposto pela sociedade quanto a questões de orientação sexual e de gênero, respectivamente. Existe também uma normatividade étnica: em nossa sociedade, o branco é o modelo; chegamos ao ponto em que personagens de quadrinhos são de pronto considerados brancos a não ser que existam marcas bem fortes de que sejam de outros grupos étnicos. Será que esses padrões impostos existem apenas quanto a comportamento sexual e etnia?

Não mesmo. Parece que sempre existirá um status quo em todos os campos humanos; mas o quanto ele pode ser desafiado, depende do período histórico. Felizmente, parece que vivemos numa época em que as religiões podem ser questionadas; mas ainda assim existe normatividade religiosa.

Em nosso país, as religiões cristãs são o modelo de normatividade religiosa. Toda religião é constantemente comparada com as religiões cristãs, ou com as outras religiões cristãs, caso se trate de uma religião cristã. Ainda que o Brasil continue sendo um país de maioria cristã, será realmente desejável passar todas as crenças pelo crivo e pelas decisões dessa maioria? E quanto a não-crenças? O quanto é pertinente a reclamação quanto ao "Deus Está Louvado" nas notas do Real, e o uso de símbolos religiosos em repartições públicas?



Eu não preciso ser ateu (e realmente estou longe de ser ateu, apesar de defender a necessidade de visibilidade cada vez maior para os ateus) para ir contra um "Deus Seja Louvado" numa nota de dinheiro. Em primeiro lugar, eu posso ser contra por motivos religiosos; posso achar que não condiz uma saudação divina numa cédula de dinheiro, que são duas coisas separadas. Para a minha religiosidade, essa frase é ofensiva. Imagine então o quão desagradável ela deve ser para quem simplesmente não acredita em Deus, ou acredita em qualquer outra divindade que não o "Deus", título eufemístico para o Jeová judaico-cristão. Acima de tudo, mesmo que eu não me importasse com essa frase, o que tem a ver o Estado emissor da nota com religião? O Estado deve ser laico, neutro diante de todas as religiões. Não deve apoiar nem esta nem aquela religião, mas proteger a liberdade religiosa de todos os cidadãos.

Se o Estado faz estas pequenas imposições, os indivíduos e as instituições religiosas também fazem suas imposições às vezes não tão pequenas. Como membro da Instituição Religiosa Cristã X, Fulano tem um pacote de crenças que não é exatamente o mesmo que o de Sicrano, membro da Instituição Religiosa Cristã Y, e muito menos que o de Beltrano, membro da Instituição Religiosa Muçulmana Z. Ainda assim em nosso convívio social Fulano, Sicrano e Beltrano impõem uns aos outros seus pacotes de crenças, embora não obrigando à conversão uns aos outros, mas agressivamente fazendo proselitismo, tentando interferir na política estatal legislando com base nos seus pacotes de crenças específicos, e julgando uns aos outros de acordo com esses pacotes.



As diferentes religiões surgem quando alguém discorda de um ou outro ponto do pacote de crenças que lhe foi dado. Se essas pessoas ou grupos de pessoas tiveram essa liberdade, por que não o cidadão comum? Por que ele é obrigado a aceitar pacotes prontos de crenças e dogmas?

Ainda que você aceite totalmente o seu pacote de crenças, lembre que a maioria dos seus semelhantes não o fez. Cada um deles tem o seu pacote, ou sua falta de pacote, o que não quer dizer que não tenham posturas diante da religião. A chave para a boa convivência religiosa, para a aceitação da diversidade religiosa, está no questionamento.

A alguns pode parecer paradoxal que o questionamento, que fomenta polêmicas e conflitos, possa trazer paz e aceitação. Mas é justamente quando você tem a coragem de desafiar estruturas rígidas, de negar o fanatismo e a intolerância, de questionar toda essa insensatez, é que está caminhando para um muito desejável futuro de diversidade religiosa irrestrita, sem interferências agressivas de um grupo contra outro.

Nas próximas postagens tanto comentarei incidentes e eventos ligados à religião, quanto tentarei desenvolver conceitos que possam ajudar a construir esse questionamento.



Meu nome é Arthur Ferreira Jr.'., tradutor de língua inglesa, revisor, escritor e monitor de língua latina, além de estudioso informal da religiosidade humana.



Ilustrações encontradas no Google Imagens

3 comentários:

  1. Belo texto, Arthur, muito bem embasado e pensado. Eu me chamo Perimar, sou biólogo, evolucionista e ateu, mas concordo obviamente com a liberdade de escolha de crença, assim como outras liberdades, desde que não fira os direitos alheios. Particularmente a crença pessoal dos outros em nada me incomoda, mas quando a coisa passa para o status de uma instituição formalizada, aí a coisa muda de figura, em minha opinião. Explico. Atualmente tenho ponderado sob outros pontos de vista e uma coisa realmente tem me incomodado nos pensamentos e reflexões que tenho feito. Quando uma religião é instaurada, via de regra (ao menos é o que tem ocorrido historicamente) ela estabelece normas de conduta, que por sua vez são baseadas nas "verdades" de como ela (a religião) lê o mundo desde sua origem até o presente momento. Nisso entra como o mundo foi criado, para quê e por quem, dentre mais um porrilhão de questões inerentes a explicações sobre a vida. Todas as religiões que eu conheço tem um esquema semelhante. Só que aí entra a questão que tenho em mente. Se uma religião "A" diz que o mundo foi criado dessa maneira "B" pelo deus "C", como o crente da mesma deve se comportar em relação à explicação da religião "X" que diz que o mundo foi criado da forma "Y" pelo deus "Z"??????? Simplesmente para qualquer um dos indivíduos a s explicações do outro são "mentiras" contra suas "verdades". E como se comportar diante do outro espalhando "mentiras" para a sociedade??????? A coisa ainda piora quando as normas são para conduta do crente. Aí elas começam a se meter na construção ideológica e comportamental da sociedade, o que geralmente finda em discussões e não obstante, em guerras. Eu, na condição de ateu, afirmo que não há provas contundentes da existência de divindades, mas a fé não trabalha com esse tipo de argumento. A fé trabalha com "verdades" que não precisam ser comprovadas, ou seja, podem pregar qualquer coisa, mesmo que seja um contrassenso social. Ainda, naturalmente elas (as religiões) se apropriam dos termos moral, bondade e justiça como inerentes à conduta religiosa, mas cada um na sua religião, ou seja, a conduta dos demais, crentes ou não, está errada. Então o ponto é: se por um lado a ideia da boa convivência é a de que se aceite a opção religiosa do outro, por outro cai numa demagogia o crente achar que o outro está equivocado ou mentindo e não fazer nada a respeito. As imagens panteístas de deuses são bem menos agressivas nesse sentido, pois não estipulam verdades absolutas ou mesmo normas de conduta, até porque são de uma amplitude que os próprios adeptos não ousam definir, o que deixa uma brecha interessante para a aceitação do ideal do outro, mesmo que em discordância. Mas quando a coisa é institucionalizada, quando há hierarquia, quando há patrimônios materiais envolvidos, aí, sinceramente, não acredito que seja possível ser coerente com o próprio discurso sem ser agressivo com o discurso do outro. Quando o Estado toma partido então, encerra um veneno social que é destrutivo, e isso pode ser percebido ao longo da história humana com muita facilidade...

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  2. Sobre sua afirmação, que é de muitos outros também, de que o Brasil é um pais de maioria cristã é outro ponto que eu pondero com mais cautela. Declaradamente esse dado é aceito, mas se formos partir para as particularidades, aí muita coisa pode mudar. A verdade é que boa parte, talvez a maioria esmagadora das pessoas que se dizem cristãs não conhecem de fato o que afirmam acreditar. Muito é passado por oralidade, mas nesse processo o conhecimento trazido por essas vertentes é perdido e/ou modificado. Pouquíssimas pessoas que eu conheço se deram ao real trabalho de ler a bíblia, documento que rege essas religiões (respeitando suas particularidades), o que eu já tive a oportunidade de fazer. Essa ignorância coletiva pode ser encarada como "benção" ou como "maldição", a depender do ponto de vista. Se por um lado é frágil reconhecer que as pessoas pregam algo que desconhecem, por outro seria terrível se elas conhecessem e ainda assim se considerassem cristãs. É fato que a bíblia é um livro que ha muito não se adéqua a qualquer sociedade moderna (se é que se adequou a alguma em qualquer momento histórico). Muitas passagens são intolerantes com mulheres, negros, homossexuais, dentre outras faixas sociais, o que é inaceitável hoje em dia (e deveria sempre ter sido assim). Penso eu que o conhecimento da bíblia levaria a uma mudança de religiosidade (ou mesmo ao agnosticismo/ateísmo) ou ao fanatismo religioso.

    Bem, esses são apenas alguns de meus pensamentos acerca da religiosidade humana que aqui compartilho para que seja apreciado por outros pensadores, logicamente totalmente aberto a criticas e sugestões que venham a somar.

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  3. Concordo com suas observações em vários pontos, Peri, embora não vá tão longe em alguns. Eu realmente também desconfio de instituições religiosas. O problema é que congregações acabam sendo inevitáveis. Como fazer para retirar poder dessas instituições e abrir mais espaço para o indivíduo? Qualquer religião é capaz de múltiplas interpretações, suas "verdades" não deveriam ser encaradas pelos seus seguidores como algo equivalente ou concorrente com verdades científicas. Gosto muito do modelo que põe ciência, religião, arte e filosofia como 4 campos de conhecimento humano, e cada um deles tem seu nicho, embora possam se relacionar nenhum deles deve substituir o outro. Me irrita muito a atitude por exemplo de criacionistas que querem impedir verdades científicas de serem passadas em escolas.
    Justamente a escola, a educação, deveria trazer informações sobre diversas religiões, para que as crianças soubessem bem o que há no mundo e possam refletir criticamente sobre suas próprias crenças. Fazer com que esses pacotes prontos de crença, como eu os chamei, sejam desconstruídos, diminuindo o dogmatismo.
    Por outro lado eu não acho que o conhecimento a fundo de qualquer livro sagrado leve necessariamente ao abandono da própria religião ou ao fanatismo. Eu mesmo sou cristão, já li a Bíblia inteira mais de uma vez, certas partes provavelmente centenas de vezes. Acontece que eu levo em conta o contexto histórico de cada passagem e não considero aquilo nenhuma "Palavra de Deus"; seria impossível pois existem passagens contraditórias, escritas em momentos diferentes por pessoas com ideias teológicas diferentes. Então eu elegi passagens que representam melhor o que eu SINTO, aquilo com que concordo e que AO MESMO TEMPO possa servir de guia para outras passagens. Seria o Sermão da Montanha, que foi reconhecido por um Ghandi, não-cristão, como o principal texto religioso que ele já pôde ler. E também parábolas como a do Bom Samaritano, que ao contrário do que parece não fala de caridade e sim de TOLERÂNCIA RELIGIOSA: basta ver o contexto histórico, samaritanos eram considerados hereges pelos judeus. No entanto é considerado o Samaritano melhor do que o Levita. A figura mítica (quem ele foi de fato ou se existiu não importa pra religião em si) de Jesus Cristo criticava o tempo inteiro a ortodoxia judaica de seu tempo. Seria bom se os cristãos fizessem o mesmo com seus próprios sacerdotes. Se percebessem que sua figura central fala em parábolas, ou seja, em alegorias, e encarassem a Bíblia como uma alegoria.
    Se pelo menos os grupos cristãos fossem mais como o povo de santo, cujo candomblé é uma religião artesanal!...

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