Por Rodolfo Carvalho
Sou artista visual a menos tempo do que artista marcial,
praticante por mais de vinte anos nas estradas do Karate-Do, lecionei, mas hoje
me vejo como um “maverick”(sem estilo definido), apenas me dedicando ao estudo
indiscriminado da arte marcial pelo aspecto estético e poético, o movimento, as
nuances, elementos vivos intrincados no vai e vem dos fundamentos. Tudo para
complementar meus estudos maiores sobre o corpo e suas possibilidades físicas e
simbólicas no universo das artes visuais.
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Praticante de Karatê executando uma das suas composições de movimentos denominada de Katá. Na foto o karateka exibe movimentos do Katá de faixa preta Gankaku (A Garça sobre a Rocha). |
Todo esse caminho oposto ao das regras absolutas da luta é
um proposital engenho visando uma desconstrução do gesso formado pelos antigos
praticantes que desejavam perpetuar toda a simbologia de suas vidas na ilha de
Okinawa e no Japão. Entretanto, o mundo se transformou. O ocidente invadiu o
oriente no final do século XIX e o oriente penetrou sutilmente encarnado nas
inspirações dos impressionistas. Era um mundo que se apresentava elegantemente
e se miscigenava aos poucos com suas culturas e muita coisa se transformou
inclusive os estudos do corpo e a ótica que se tinha do meio-ambiente. Apartir
de então, a Revolução Industrial na Europa desvalorizava o indivíduo e
enaltecia a máquina como agente transformador seja no trabalho explorador das
fábricas ou na política do recém surgido comunismo que também mostrava que o
conjunto do proletariado era uma máquina poderosa de combate ao assim chamado
“monstro da burguesia” que Marx e Engels tanto combateram. Do outro lado do
mundo, o Japão fechava as portas para o ocidente após a Revolução Meiji e o fim
do Samurais, mas tardiamente, pois os desejos e as facilidades trazidas pela
indústria seduzira o povo japonês e isso refletiria em décadas no futuro. A
China também se pronunciou com um fechamento ao mundo ocidental mas acabou
criando seu próprio arcabouço revolucionário e desenvolveu um modelo industrial
aproveitando seu poderio de trabalho baseado no número populacional. Mas, como
isso tudo tem à ver com o estudo do corpo-mídia?
A expansão territorialista europeia não sairia barata, obviamente
e com as décadas avançando e muitos conflitos sangrentos surgindo a cada
intervalo de anos incluindo a Primeira Grande Guerra, logo chegaria o momento
em que as forças dos Aliados enfrentariam o Eixo na Segunda Guerra. Mas o que é
mais interessante é um determinado recorte desse momento, em 1945 quando os
soldados americanos após lançaram a Bomba Atômica no Japão e tiveram seu
primeiro contato com os primeiros pelotões que não retornaram. Foram homens que
tiveram seus corpos perfurados aparentemente com golpes fortes, mas sabia-se
que não eram com as afiadas katanas japonesas. Surgia o primeiro sinal da
existência de algo que eles não estavam familiarizados. O corpo falava através
de outros corpos.
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O Clube de Karatê Acrópole foi uma das mais respeitadas associações da luta projetando para o cenário nacional figuras como o Hansho Ivo Rangel, ex técnico da Seleção Brasileira de Karatê. |
Os anos passaram e as primeiras academias de artes marciais
foram sendo abertas no ocidente, principalmente das de Karate, supervisionadas
pelo núcleo da Nihon Karate Kiyokai, grande confederaçãoo de karatekas ao redor
do mundo. Foi exatamente nos anos 50 que a expansão dessa arte chegou ao
ocidente através dos ensinamentos de Hansho Ginshin Funakoshi, fundador do
estilo SHOTOKAN de karate. Na verdade tratava-se de uma revolução, pois a mesma
arte era restrita a poucas famílias em território japonês e o mestre Funakoshi
buscou transformar os estudos da arte, elitizados pelas decadentes fameilias
arrasadas pela Guerra em uma metodologia pedagógica avançada que compreendia
uma prática não somente de uma luta mas uma educação do corpo, mente e caráter.
Fora desenvolvido para isso uma sistema próprio de graduação
de faixas por cores separando os alunos de faixas coloridas (dangai) dos
praticantes graduados faixas-pretas (kodansha-kai), possibilitando assim uma
melhor divisão da metodologia de ensino através da distribuição do aprendizado
de fundamentos (kihon), luta (kumite) e kata. Esse último aspecto, entretanto,
que é o principal objeto desse estudo reflete o mais primoroso exemplo do
corpo-mídia dentre da arte marcial paralelamente utilizado por outras lutas
como kung fu ou muai tai.
O kata, pode ser definido formalmente como um conjunto de
golpes sequenciados coreograficamente e que representam um momento, uma
história ou homenageiem algum lugar. Todos esses movimentos são cuidadosamente
pensados e se complementam como uma reação em cadeia e buscam provocar o
praticante a desenvolver o autocontrole ao mesmo tempo que se comunica com o
observador. Uma relação viva entre emissor – mensagem – mídia – receptor que
garante uma precisão no uso do corpo que serve de ferramenta de comunicação.
Mas o que o corpo comunica?
A mensagem é a história contada em forma de movimento, mas
não se resume a isso. A mesma história pode ser contada por dois praticantes
que executam os movimentos ao mesmo tempo mas possui individualidades que
variam da pessoa, do estado emocional ou do ambiente.
Este trabalho mostrará muitos exemplos acerca dessas
movimentações e trará situações pessoais de como é vivenciar esses momentos.
Espero que goste!
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Demonstração conhecida como Jiu Ippon. É parte do processo pedagógico e andragógico no Karatê que movimentações que simulem combates sejam regularmente aplicadas em aula. |
Fluir Como Água, Pisar Como Rocha.
Dentro do ensino do Karatê existe um método de aplicação ao
qual denominamos katá. Uma combinação coreográfica definida de ataques,
defesas, bases e esquivas que simulam uma situação de combate, uma homenagem a
algum lugar ou algum mestre, ou uma sequência didática e metodológica.
Pelo estilo SHOTOKA desenvolvido pelo Mestre Ginshin
Funakoshi somam-se um total de 26 desses movimentos, sendo os cinco iniciais
voltados para o desenvolvimento pedagógico para iniciantes da arte.
Por décadas o Karatê era denominado Balé da Morte, devido a
seus movimentos em alguns aspectos terem uma certa semelhança com passos de
dança, porém nada próximo de sê-lo. A arte, desenvolvida na ilha de Okinawa
para combater o exército do Shogun sem armas (que eram proibidas) expandiu-se
pelo oriente e tornou-se um dos veículos de ensino no início do século XX em
escolas e universidades desenvolvendo um novo estilo de aprendizado permitindo
que toda a população do japão pudesse aprender e, algumas décadas depois viria
a se espalhar pelo mundo.
Entretanto, os movimentos dentro dessa arte possuem uma
função mais elementar: a de comunicar. Em Merleau Ponty, nosso corpo é a obra
de arte em sua linguagem poética e para isso ele expressa constantemente
sentimentos, ideias, desejos e angustias sem que nós usuários do mesmo tenhamos
consciência disso. No uso dos movimentos do Katá não é diferente, pois o corpo
é condicionado a uma sequência fechada mas que não pode contea capacidade do
ser de exercer a sua resiliência e, a partir da mesma recondicionar o vaso que
o contém.
Dentro da prática exercitamos o simulacro de Baudrillard
embora não embasados em sua obra mas de fácil identificação com a mesma.
Repetimos constantemente nossos movimentos que é possível a criação de uma
consciência coletiva temporária no ato de fazer as movimentações com duas, três
ou cinco pessoas ao mesmo tempo. Baudrillard diz também que o simulacro são
“naturais, naturalistas, baseados na imagem, na imitação e no fingimento,
harmoniosos, otimistas e que visam a restituição ou a instituição ideal de uma
natureza à imagem de Deus”. Essa assertiva do autor nos mostra exatamente como
se dá um dos processos de aprendizado do Karatê e, mesmo que possa parecer
retrógrado no sentido da imitação, sabe-se que praticantes de atividades que
envolvam o corpo comunicante que a repetição é um processo bem sucedido de
absorção do conteúdo embora, hajam variações que podem ser adaptadas quando
tratamos do movimento seja na explosão, na velocidade ou na potência do golpe
de acordo com as várias possibilidades que a massa corpórea possa permitir.
Sobre o Grito "Não-Grito".
É comum em artes marciais presenciarmos os lutadores
emitindo gritos uns contra outros no momento do combate ou nas demonstrações de
golpes. Entretanto algumas coisas necessitam de explicação quando tratamos como
“grito” o que não pode ser tratado meramente como tal.
O que chamamos de ‘grito” ou KI é um processo de canalização
energética que desenvolvemos com o decorrer dos anos de treino que envolve o
corpo inteiro desde a produção hormonal comandada pelo cérebro, as contrações
musculares de quase todos os músculos do corpo até o golpe final acompanhado de
uma reverberação vocal poderosa que funciona como uma resultante do impacto
energético na superfície à qual o golpe está destinado. Seria como a chama do
gás queimado numa plataforma de petróleo. A energia produzida é tanta que é
necessário o escoamento de parte dela pois o corpo não suportaria visto que, no
caso dos homens os testículos são recolhidos à cavidade pubiana e nas mulheres,
os seios contraem, pressionando toda a região. O “grito” ou KI nesse caso, tem
a função de regular esse processo de tensão que o corpo sofre para não causar
danos físicos devido à repetição.
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O grito ou "kiai" é bem mais que uma reação física das cordas vocais. Na foto, a karateka faixa preta emite a resultante da contração de quase todos os músculos do corpo. O grito nada mais é do que a liberação da energia acumulada que pode ser canalizada em um golpe, por exemplo. |
O Uso Cotidiano
Pratica Karatê afeta positivamente o processo do corpo se
comunicar gerando movimentos mais precisos e maior expressividade
possibilitando melhor percepção de terceiros. A ciência contemporânea não
reconhece oficialmente as idas e vindas dos fluidos energéticos que o corpo
possui, pois ainda há uma ligação muito forte com a religiosidade em algumas
culturas, principalmente no Japão onde o xintoísmo é a segunda maior religião
e, devido à suas praticas animistas todos os praticantes de artes marciais
adeptos dessa crença explicam o mundo através de seus dogmas. Entretanto,
estudos são feitos constantemente para entender os limites do corpo e dessa
fluidez de campos energéticos que constantemente usamos para executar tarefas
cotidianas que envolvam tanto a força quanto o intelecto.
Para exemplificar, existe no Karatê, um fator chamado de
Zanshin ou Espírito do Guerreiro. É um condicionamento mental e corpóreo que o
praticante executa com a finalidade de isolar os campos de percepção ao seu
roedor, eliminando o supérfluo e concentrando-se na sua tarefa.
Usa-se isso em práticas de coaching nas grandes empresas
depois de observar o comportamento dos empregados durante algumas semanas. São
separados por grupos, e, nestes grupos são introduzidos exercícios semelhantes
ao do Zanshin para que sejam potencializadas características variadas de acordo
com as dificuldades de cada um como maior concentração, polivalência, melhor
filtragem nos sentidos e desenvolvimento das inteligências baseadas nos mesmos.
É um processo longo mas com resultados surpreendentes , embora não disponha de
números, podemos facilmente perceber no funcionamento de empresas como Ford,
Toyota dentre outras.
Dor e Sofrimento Podem Ser Superados
Em março de 2013 sofri um acidente de carro, mas não tive nada de
grave em termos ortopédicos, visto que houve apenas perda de parte muscular do
pé direito. O momento do acidente é sempre muito chocante pois envolve uma
invasão do corpo que está sendo mutilado e do cérebro que luta para processar
informações que permitam que a pessoa continue lúcida.
Consegui passar nos dois testes com láureas, embora tenha me
machucado bastante no tornozelo ocasionando um internamento de 2 meses.
Entretanto algo me chamou atenção. Obviamente, não poderia provar a menos que
passasse por diversas sessões com terapeutas de diferentes áreas para confirmar
isso, mas confiante de que durante 20 anos eu pratico artes marciais, consegui
manter controle do meu corpo e da minha mente ao ponto de poder me jogar por
cima de minha mulher no momento dos três capotamentos que sofremos no acidente,
manter a calma e serenidade para sair do carro, ainda que me arrastando e
buscar socorro. Em outro momento de minha vida, com menos preparo, poderia ter
ficado desacordado no momento do impacto que foi justamente do meu lado.
A prática das artes marciais permite que mente e corpo
trabalhem em sincronia perfeita expressando em linguagem não verbal todos os
nossos anseios. Talvez que possa explicar isso com a mais alta certeza é Harry
Pross, quando afirma que o corpo é antes da máquina e ao mesmo tempo somos
máquina, imperfeita, mas o mundo em sua imperfeição, é o que nos torna mais
belos.
Eu busco diariamente praticar Karatê através dos movimentos
mais sutis do dia-dia para mante rum equilíbrio físico e emocional pois oito
meses ainda é pouco tempo e o choque foi muito forte para mim, mas acredito que
mente e corpo trabalham para sarar feridas, não as crônicas somente, mas as
feridas da alma que somente nós que sentimos a dor sabemos onde ela mais se dilacera.
Rodolfo Carvalho é Artista visual e ilustrador. É graduado faixa-preta de karatê e praticante calhorda de Muay Thai.
Bibliografia
BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e Simulação. Ed Releogio Dágua. Lisboa, 1991.
PONTY, Merleau. Fenomenologia da Percepção. Ed Martins Fontes. 2 ed. São Paulo. 1991
RANGEL, Ivo. Estudos de Karatê. EGBA. 4 ed. Salvador. 1996
ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual. Ed Thomson Pioneira. São Paulo. 2005